11 novembro 2018

Desejo que seja

Não-ser é cansaço
E não se ver é sofrer
É ter a dor como travesseiro
A solidão como parceira de cama
O descompasso por despertar
E o silêncio se encarregará do “bom dia”

Não-ser é cansaço
E não se reconhecer é envelhecer
É ter os dias como adversários
Sem protetor solar ou galochas
As manhãs escravas das tardes
As noites são as criadas das longas madrugadas

Não-ser é cansaço
E não se saber é fenecer
É ter geladeira vazia e espelho quebrado
É a morte do cachorro, do pai, do namorado
São quartos assombrados por aquilo que-é
E salas sempre frias

Não-ser é cansaço
E não se gostar é parecer desaparecer
É ter hormônios e desejos deprimidos
Pouca calma e nada, quase nada, de alma
É ter uma vista única para o caos
E portas para lembranças já perdidas

Não-ser é cansaço
Não se perceber é capital
É ter ídolos tombados
Sem ebó, ramadã ou natal  
De saudade de si
Morre-se já no primeiro degrau.

09 setembro 2018

Quando a alma sai

Quando minha alma sai para passear
E me deixa com lambadas de solidão
Meu corpo reage cansado
Às imagens de um córtex privado de emoção
Laçado por neurotransmissores descompassados

Quando minha alma briga comigo
E me deixa com correntezas nos olhos
Meu sorriso foge
Para o fundo das entranhas, sem abrigo
Escondido da ausência de cor e dor

Quando minha alma está ferida
E vejo suas fraturas expostas
Meu corpo reage confuso
A dor que nao dói esfola e mata
A pele íntegra, perfumada e sem brilho

Quando minha alma nada diz
Por ferimento, intolerância ou deleite
Meu corpo reage à sua voz
Dizendo do seu amor e preocupação
Obturando minha lacuna com a suas flores.

Décio Plácido Neto (07/09/18)

26 março 2018

Artesanar

Não são tanto marteladas e forjas
Mais parecido com coesão e delicadeza na liga
Pra juntar força, pra ter peito e fôlego
E desembainhar a voz teimosa por expressão

O verbo mudo ganha corpo e vulto
Nos olhares ambiguos das salas de espera
No dissabor da atenção quebrada
Na lombada fria de uma curva acentuada

O verso simples - de empinar as cadeiras -
Preenche entranhas, colore sonhos - tonifica! -
Se diz na rua, no consultório, até num balcão de pães
Com maquinação leve, sem trava na boca

Mas eu nunca trouxe verso na mala
Desconfio até que não os diga muito bem
Aqui, o vulgar era um-pra-um. Um desejo,
Uma estrofe, um cansaço, o universo de uma palavra de inteira.

Entre sonetos e tudo que sou eu
Há  quem diz querer,
Há também quem precisa fingir que não quer.
Existem as badaladas dos sinos
E uma ou outra trama por saber 
Sobretudo, urgência em construir pontes entre as letras.
Décio Plácido Neto, 26.03.2018

17 março 2018

Tiros no Brasil

O assassinato de Marielle Franco roubou a minha poesia, minha saúde mental, minha conexão com essa sociedade que está dando uma guinada rumo aos mais baixos porões da barbárie.
Não saber se os assassinos usam farda ou são apenas "pessoas de bem verde-amarelos" me deixa numa encruzilhada sem Èṣù ... Quanto custa uma cabeça com pensamentos dissonantes de empatia, direitos humanos, coletividade, acesso a bens e serviços de qualidade e equidade?
Raul já cantava que o prato mais caro é o que se come cabeça de gente que pensa; Elza, por sua vez, grita que a carne mais barata do mercado é a carne negra....
Num país onde as forças armadas clamam para agir sem investigação, estar recluso num quarto de hospital nem me parece tão seguro; imagine quando se é a porta-voz eleita de mais de 46 mil excluídos do tabuleiro marcado do retrocesso.
Parem com essa história de integrar, de não dividir direita e esquerda... NÃO ME CONVENCE.  Enquanto estamos jogando limpo, denunciando, manifestando, sem revolta armada, sem gás ou porretes, ainda confiando nas instituições (?), ELES ESTÃO NOS MATlANDO. Para mim essa é a linha de corte entre a salvaguarda de um posição e o  extremismo fundamentalista. Não quero inimigos, mas não ofereço meu pescoço também.
O ovo da serpente eclodiu, Brasil!
Que gbogbo Òrìsà tenham clemência dessa terra de gente decente.
#nossavitórianãoseráporacidente
Décio Plácido, 16.03.18

15 março 2018

Viagem ao centro da cura

Tain, tin, tin, tain
Tain, tin, tin, tain
Checa o monitor
O senhor tem alergia a quê?
Quem é o cirurgião?

Confere o manguito
A sala já está pronta?
Quanto o senhor pesa?

Já tem operacional pra levar?
O senhor vai fazer qual procedimento?
De quanto tempo o jejum?

Vamos fazer o check list

O anestesista já chegou? 

Quanto de dor já suportou?

Tain, tin, tin, tain
Tain, tin, tin, tain
Precisa de sangue, doutor?
O senhor tem alergia a quê?
Aqui só se pensar em viver

Confere o prontuário
Qual é mesmo o procedimento?
Senhor, segurança pra todos no momento! 

Posiciona o paciente
Só vai tirar um soninho pra relaxar
Pegou o acesso, monitora a PA

Tain, tin, tin, tain
Tain, tin, tin, tain
Tá vendo? Já acabou
Volta pro CRPA
Espera teu corpo voltar.

Liga pra o andar
E só leva quando a enfermeira chegar
Prontuário, receita e atestado pra levar

Tira o eletrodos
O senhor já vai voltar
Não esqueça de beber água e urinar

Pode levar, operacional
O senhor descanse e bom jantar
Em casa é lugar de melhorar.
Décio Plácido Neto, 15.03.2018

14 março 2018

Deus também tira folga

Enfrentei, outra vez, a escuridão
Um terror só vislumbrado da beira
Como um simulador de morte certeira
Numa realidade paralela de mesmo corte

Ainda dói cada fibra nervosa
Esgotei cada tecido em câimbras
Dos tremores da dor, outros músculos vingam
Num esforço para não despencar da borda

O que vem com o grito do horror
Do espasmo que contorse e retorce e
Encapsula a sanidade num grilhão
Pesado demais, cansado demais, num intuito vão

A dor da pedra
O ouriço natural
Eu calço a dor e
Expulso a flor de cálcio

Nunca fito os olhos de Medusa
Sofro cego por receio do mergulho
A tentação de homeostase é graúda
E quer acabar com o que é mente, corpo e dúvidas

Tenho sido desafiado por Cérberos
Tenho me extenuado com Kongamotos
Tenho alucinado desfiladeiros sem cor
Tenho tido medo de não voltar da porta

O santo do dia - uma alma fria -
A mestra que segura a chave, a guardiã
Que traz o elixir, não sem me punir,
Com demoras, sorrisos de bondade en passant

A dor deu pedras
De sal e sais
Eu urino terra
E minerais imorais

... e Deus não veio trabalhar.
Décio Plácido Neto, 14.03.2018

13 março 2018

Temporada de pedras

Pinga
Vejo gotejar
Percebo escancarar as entranhas
Quando desce pelo equipo

Tramadol
Morfina
Umas doses de calma
Num corpo que grita

Enfermeiras
Luzes acesas
Afere a pressão, mede temperatura
E meu corpo é só uma massa

Estar no hospital é tão mortal quanto nascer

Pinga antibiótico
Aumenta o antinflamatório
A prisão de ventre
Dá voz a minha dor inconsciente

Qual o aprazamento?
- Pergunto para a pitonisa
O médico não mudou
E os novos bisturis invadem meus ouvidos

Nego a gravidade
Barganho com os Orixás
Aceito a dor nas costas
Converso com meus cálculos renais

Estar no hospital é tão entediante quanto morrer

Pinga
Pinga, enfermeira
Um pingo de humanidade
Neste corpo já tão sem vontades

Goteja lágrimas
Espera o maqueiro
O roupão não cabe
Esse quarto pequeno não cabe qualquer vaidade

Desce pra tomo
Ultrassom e raio x
E o frio só não congela
A tortura de sofrer por qualquer dor

Estar no hospital é tão esquizofrenizante quanto todo dissabor.
Décio Plácido Neto, 13.03.2018

21 fevereiro 2018

Nobreza marginal

Confesso: minha alma é aristocrata
Descendo de uma linhagem imaginária
De reis esnobes e arrogantes da Bahia
Dos reinos de São Caetano e Nazaré (das farinhas)
De uma seiva incomum nas veias
Com um brilho inconteste sobre a pele
Visto pelos olhos fechados do desejo

No entanto, luto nessa vida proletário
Tenho sol, poeira e chuva nos ombros
Faço versos no descanso do turno da luta
Como de tudo, bebo também, sem labuta
Faço contas, pago planos, almoço a peso
Vou ao Buracão e tomo sol em exagero
 E sou pipoca de lavagem em todo largo

Me encanto com clássico e popular
Me arrisco num samba marginal para desvendar

Dos restaurantes de Sampa e da Barra
Aos pés-sujos de toda brejeira Salvador
Sei do menu às neuroses de seus garçons
Sorrio pra todos e pago gorgeta
Não é sobra, mas empatia na mesa
Na minha esquizofrenia social
Um aristogato vira-latas em ascenção

Pago Alimentos com olhos em Dubai
Decorei os manuais de etiqueta
Minhas roupas, após seis vezes, são caras
Uso também itens da promoção
Meu tempo de vida é mais que dinheiro
Meus gestos, sobre acusações, são finos
Ainda que ande com martelo e foice no peito.

Me encanto com vernáculo e linguajar
Me arrisco numa poesia marginal para revelar

06 fevereiro 2018

Vem pra rua

Tava cheio, 
Tava lindo,
Tava sujo
e muito calor
Carnaval antecipado
Furdunço descarado
E governantes cheios de bossa
Vem pra rua Salvador!
Micro trio
Micro prévia
E muita cerveja
Parecia cota única
Um único rótulo no isopor
Sem reclamar... 4 por 10 (reais)
Isso já é quase amor.
Polícia, tinha no bonde
Guarda, se viu de longe
Gente metendo dança, coisa fina
Banheiro químico nem perto
Os morros vertiam lama sob os pés
A Salvador criativa do hightour
Não dispensa seu perfume de cevada e urina
Era véspera
Era ensaio
Era o circo na negra Roma
Para gladiadores, os foliões
Para imperador, os foliões
Para corpos mortos, os foliões
E reencenamos a loucura social com honras
Tinha coroa
Tinha chinela
Tinha até fantasia de si
Tinha negro
Tinha viado
Gente de boa, gente naquela
Tinha um mundo hipnotizado passando por mim
Mas nem tudo nos olhos
Às vezes, no chão
Mais uma lata, catavam sujas mãos...
Mas quem poderia ver?
Se descer ou subir era
Só ao comando do refrão
Deixando a lata cair pra desaparecer.
Mas, faltando cinco dias...
Já é carnaval!
Nem camarista
Nem alcaide 
Me dirão como dançar
Que corda pular ou a cerveja perfeita
O carnaval só me serve
Para ver o samba nascer
Nos pés da minha preta.
Décio Plácido Neto, 05.02.2018.

Mais do Mesmo Alívio!!!